Nunca
se soube de onde ela veio... Nem mesmo teve sobrenome! Apenas,
CIRILA!!! Uma mulher negra, pobre, solteira, forasteira, sozinha, sem
família, artista... Ela reunia todas as caracteristicas de um individuo
destinado ao preconceito e à intolerância. Porém, impôs sua cidadania e
se tornou numa das mulheres mais importantes de toda a história de
Felisburgo. Deixou-nos além do legado de suas esculturas, uma grande
lição de vida e de cidadania. Sua memória jamais será apagada de nosso
meio. Enquanto Felisburgo tiver história para viver e contar, Mestra
Cirila permanecerá!
O PRESÉPIO DA “TIA” CIRILA
Já escrevi sobre ele aqui uma vez. Refiro-me ao majestoso
presépio da “Tia” Cirila, em Felisburgo. Ele tomava a casa inteira da
solteirona, que detestava sujeira e vivia em guerra com os animais que passavam
pela sua calçada.
O presépio da “Tia” Cirila era o mais visitado no natal, não
só pela população de Felisburgo, mas por muita gente das cidades
circunvizinhas. Todos queriam vê-lo de perto, ajoelharem-se diante dele e
render graças ao Deus Menino rosadinho, de braços erguidos no seu berço humilde
de palha.
“Tia” Cirila recebia muito bem as visitas. Oferecia-lhes café
com biscoitos de goma que eram uma delícia. Quem a visse tão feliz não seria
capaz de imaginar o quanto um calundu crônico a deixava furiosa e transtornada
quando algo a contrariava – os moleques de rua, por exemplo, e os animais que
infestavam de porcaria sua calçada, sempre limpa e bem conservada.
Apesar de toda amabilidade, “Tia” Cirila, robusta mas ágil,
não desgrudava os olhos das visitas, vigiava-as o tempo todo. Os suspeitos eram
submetidos a um verdadeiro interrogatório e só então podiam entrar e apreciar
toda a beleza esplendorosa da famosa “Gruta de Belém”, reconstituída tal e qual
está descrita na Bíblia.
Precavida e desconfiada, “Tia” Cirila não gostava que os
visitantes mal educados cuspissem no chão da casa, falassem palavrão, rissem ou
conversassem alto demais, desrespeitando aquele lugar “santo”. Certa vez fizera
o maior escarcéu chamando a atenção dos vizinhos, porque algum visitante ousara
criticar um dos membros da “Família Sagrada”. O impostor tivera que se retirar
às pressas, com “Tia” Cirila ameaçando-o com uma vassoura na mão.
- Me faça o favor de desaparecer daqui, Satanás! Lugar de
Capeta é no inferno! Se veio botá defeito nas minhas coisas, por que não ficou
em casa, seu moleque, vagabundo, safado? E faça o favor de tirar esta tiririca
dos pés, seu imundo! Felisburgo ainda tem muita água! Inclusive pra lavá sua
língua também! - Sapateava. Agitava-se toda. Só se controlava a muito custo.
Considerava a “ofensa” de extrema gravidade e não podia ser perdoada assim tão
fácil.
Aquele presépio que ela passava semanas edificando, reparando
detalhe, embelezando-o com criatividade de genial artesã, aquele presépio
venerado com tanta devoção, era sua vida.
Sem perder uma procissão, fazendo-se presente em todos os
atos religiosos celebrados em Felisburgo, “Tia” Cirila ficava louca para que
chegasse o fim do ano para homenagear e render graças ao Salvador do Mundo,
erguendo uma réplica da famosa estrebaria que lhe servira de berço.
Passado tanto tempo, nem Cirila nem seu presépio modelo
existem mais. Todavia ambos são sempre lembrados a cada natal, pois continuam mais
vivos que nunca na memória de cada felisburguense que o conheceu, com um toque profundo
de saudade e gratidão.
Autor: Sebastião Lobo
(Vigia do Vale – Na Boca do Lobo - nᵒ 622 – 06 de janeiro de 1997)
(Em 2013, Gladiston de Araújo, resgatou o Presépio de Tia Cirila e todos
podem visitá-lo no Centro Cultural Baptista Brazil. Só lembrando que
sobrou muito pouco de suas esculturas em argila, infelizmente.
Ressaltando ainda que, as que restaram encontram-se em péssimo estado de
conservação e estão sob a tutela do município. Quem sabe um dia não
resolvem restaurá-las?)